Sem querer levantar muito o véu sobre o conteúdo da história, ao longo do segundo romance da saga Milleninnium, Steig Larson, de forma muito geral, vai utilizando a alguns conceitos algébricos e também todo o mistério conhecido em torno do Último Teorema de Fermat, como metáfora para a pergunta: Quem é Zalachenko, o cérebro de uma organização internacional de tráfico de mulheres?
Mas o recurso à Matemática neste romance não se fica por aqui. A personagem principal, Lisabeth Salander, é uma hacker informática extremamente hábil que descobriu o gosto pela matemática, e em particular por astronomia esférica, num artigo que lera numa revista Popular Science que encontrara esquecida por um passageiro no aeroporto Leonardo Da Vinci, em Roma, tal como descreve o seguinte excerto da versão brasileira do romance:
"Nove meses antes, tinha lido um artigo numa Popular Science esquecida por um passageiro no aeroporto Leonardo da Vinci, em Roma, e no mesmo instante tomara-se de um fascínio absoluto por astronomia esférica, um assunto absolutamente espinhoso. Num impulso, fora até a livraria universitária de Roma e comprara algumas das teses mais importantes sobre a matéria. Para entender astronomia esférica, porém, tinha sido obrigada a mergulhar nos mistérios relativamente complicados da matemática. Nos últimos meses, dera a volta ao mundo e visitara regularmente livrarias especializadas à procura de outros livros sobre o tema. De modo geral, os livros tinham ficado enfiados nas malas, e seus estudos haviam sido pouco sistemáticos e um tanto hesitantes, até que passou por acaso na livraria universitária de Miami e saiu de lá com Dimensions in Mathematics do dr. L. C. Parnault (Harvard University, 1999). Encontrara o livro poucas horas antes de iniciar um périplo pelas Antilhas."
E é o livro Dimensions in Mathematics que acompanha Lisabeth Salander ao longo da fase inicial do romance, sendo que em determinada altura, Stieg Larson, descreve a leitura de Lisbeth Salander da seguinte forma:
28=2^{2} \times ( 2^{3}-1) \\
496=2^{4} \times (2^{5}-1) \\
8.128=2^{6} \times (2^{7}-1) $$
O livro Dimensions in Mathematics a que se refere o romance pode ser encontrado aqui.
"Dimensions in Mathematics não era estritamente um manual de matemática, e sim a versão de bolso de um tijolão de mil e duzentas páginas sobre a história da matemática desde a Antiguidade grega até as tentativas contemporâneas de dominar a astronomia esférica. Era considerado uma bíblia, comparável ao que um dia representara, e ainda representava para os matemáticos sérios, o Aritmética de Diofante. A primeira vez que abrira o Dimensions fora na esplanada do hotel da praia de Angra Grande, e se vira de repente num mundo encantado dos números, num livro escrito por um autor que não só era um bom pedagogo como sabia surpreender o leitor com anedotas e problemas desconcertantes. Conseguira acompanhar a evolução da matemática de Arquimedes até os contemporâneos Jet Propulsion Laboratories da Califórnia. Compreendia seus métodos para solucionar os problemas. Vivenciara o encontro com o teorema de Pitágoras ($x^{2} + y^{2} = z^{2}$), formulado cerca de quinhentos anos a. C., como uma espécie de revelação. De repente, compreendera o significado do que havia decorado na escola, numa das raras aulas a que havia assistido. Num triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos lados do ângulo reto. Estava fascinada pela descoberta de Euclides por volta de 300 a. C., enunciando que um número perfeito é sempre múltiplo de dois números, sendo um deles uma potência de 2 e o outro o mesmo número na potência seguinte de 2 menos 1. Era um aperfeiçoamento do teorema de Pitágoras e ela compreendia a infinidade de combinações possíveis.$$6=2^{1} \times ( 2^{2}-1) \\
28=2^{2} \times ( 2^{3}-1) \\
496=2^{4} \times (2^{5}-1) \\
8.128=2^{6} \times (2^{7}-1) $$
Ela podia continuar indefinidamente sem achar um só número que atentasse contra a regra. Havia nisso uma lógica que agradava ao senso de absoluto de Lisbeth Salander. Rapidamente, e com um prazer manifesto, ela assimilara Arquimedes, Newton, Martin Gardner e mais uma dúzia de matemáticos clássicos. Então chegara ao capítulo de Pierre de Fermat, cujo enigma matemático, o teorema de Fermat, a desconcertara por sete semanas. Um prazo até razoável, considerando-se que Fermat levara alguns matemáticos à loucura por quase quatro séculos, até que um inglês chamado Andrew Wiles conseguisse, e isso apenas em 1993, resolver o quebra-cabeça. O teorema de Fermat era um postulado de uma simplicidade enganosa. Pierre de Fermat nasceu em 1601 em Beaumont-de-Lomagne no sudoeste da França. Por ironia da história, ele não era sequer matemático, e sim um magistrado que se dedicava à matemática como uma espécie de excêntrico passatempo. Ainda assim, era considerado um dos mais talentosos matemáticos autodidatas de todos os tempos. Tal como Lisbeth Salander, gostava de resolver quebra-cabeças e enigmas. O que parecia diverti-lo mais que tudo era debochar de outros matemáticos elaborando problemas sem se dar ao trabalho de oferecer a solução. O filósofo René Descartes qualificou Fermat com uma série de epítetos degradantes, ao passo que seu colega inglês John Wallis o chamava de “esse maldito francês”. Nos anos 1630, foi publicada uma tradução francesa do Aritmética de Diofante, que reunia todas as teorias formuladas por Pitágoras, Euclides e outros matemáticos da Antiguidade. Foi trabalhando no teorema de Pitágoras que Fermat, num insight genial, propôs seu problema imortal. Formulou uma variante do teorema de Pitágoras. Em vez de ($x^{2} + y^{2} = z^{2}$), Fermat transformou o quadrado em cubo ($x^{3} + y^{3} = z^{3}$).O problema era que a nova equação não parecia ter solução com números inteiros. Assim, mediante uma pequena modificação teórica, Fermat tinha transformado uma fórmula que propunha um número infinito de soluções perfeitas num impasse sem solução nenhuma. Seu teorema era exatamente isto — Fermat afirmava que em lugar nenhum do universo infinito dos números existia um número inteiro em que o cubo pudesse se expressar como sendo a soma de dois cubos, e que essa era a regra para todos os números com potência superior a 2, ou seja, justamente, o teorema de Pitágoras. Os demais matemáticos logo concordaram. Recorrendo ao método da tentativa e erro, constataram que não encontravam nenhum número que refutasse a afirmação de Fermat. O único problema era que, mesmo que ficassem fazendo cálculos até o final dos tempos, não conseguiriam verificar todos os números existentes, de modo que os matemáticos não podiam afirmar que o próximo número não iria invalidar o teorema de Fermat. Em matemática, com efeito, as afirmações precisam ser matematicamente demonstráveis e se expressar por uma fórmula genérica e cientificamente correta. O matemático deve ser capaz de subir numa tribuna e pronunciar as palavras “é assim porque...”.
Fermat, como era de seu feitio, zombou dos colegas. Nas margens do seu exemplar de Aritmética, o gênio rabiscou algumas hipóteses, concluindo com as seguintes linhas: Cuius rei demonstrationem mirabilem sane detexi hanc marginis exiquitas non caperet. Ou seja: Descobri uma demonstração maravilhosa. Não cabe na estreiteza desta margem. Se sua intenção era enlouquecer seus colegas, conseguiu. Desde 1637, praticamente todos os matemáticos que se respeitam dedicaram tempo, e às vezes muito tempo, tentando demonstrar a conjectura de Fermat. Gerações de pensadores quebraram a cara até que em 1993 Andrew Wiles realizasse a demonstração que todos esperavam. Fazia vinte e cinco anos que ele vinha refletindo sobre o enigma, e nos últimos dez, quase que em tempo integral. Lisbeth Salander estava absolutamente perplexa. Na verdade, a resposta não a interessava nem um pouco. A busca da solução é que a mantinha em suspense. Quando lhe propunham um enigma, ela o resolvia. Levava um tempo elucidando os mistérios matemáticos até compreender o princípio dos raciocínios, mas sempre chegava à solução certa antes de conferir a resposta. Assim é que, depois de ler o teorema de Fermat, pegara um papel e se pusera a rabiscar uns números. Com certa surpresa, não conseguira decifrar o enigma. Proibindo a si mesma de olhar a resposta, pulou o trecho que oferecia a solução de Andrew Wiles. Ao invés, terminou a leitura de Dimensions e constatou que nenhum dos demais problemas formulados no livro oferecia alguma dificuldade especial. Depois disso, dia após dia, debruçou-se sobre o enigma de Fermat com uma irritação crescente, perguntando-se que “demonstração maravilhosa” Fermat teria encontrado."
O livro Dimensions in Mathematics a que se refere o romance pode ser encontrado aqui.
Sem comentários :
Enviar um comentário